terça-feira, 6 de outubro de 2015

Mães-Meninas Menestréis

A criança é transformadora por natureza! Quem teve a sorte de ser transformada por um filhote de humano sabe bem o que quero dizer. Quantas ações que mudaram o mundo foram desencadeadas após a chegada de um bebê que trouxe novos desafios, como uma síndrome, por exemplo? Até algo corriqueiro como atravessar a rua passa a ser diferente quando ganhamos a consciência de que um ser frágil depende dos nossos cuidados, sobretudo se ele foi profundamente desejado. 
Isso acontece porque as crianças são generosas ao nos ensinar. Em geral elas gostam de cooperar, talvez porque saibam que atuar junto é muito mais instigante, embora os adultos insistam em colocar todas elas quietinhas: só assistindo. Quando eu e a minha equipe da Cantar e Contar compreendemos que se as crianças atuassem conosco encantaríamos muito mais, nos permitimos transformar e ganhamos identidade e potência. Hoje elas atuam o tempo todo: mas nem sempre foi assim.




Comecei como contadora de histórias em uma instituição que infelizmente não existe mais: a Fazer Arte. Minha missão era ler para aquelas três inesquecíveis turmas os livros que eu selecionava cuidadosamente para elas durante o intervalo das minhas aulas na Escola Parque. Para mim também foi um período de deliciosas descobertas porque não tive acesso à literatura infantil de qualidade durante a minha infância. Assim, me deparei com escritores e ilustradores fascinantes como Mariana Massarani, Frank Asch, Stephen Michael king e tantos outros. Um dia convidei meu vizinho, o músico e pesquisador Rogério Lopes para participar desse momento mágico. Ele alinhavou canções com as histórias que eu contava e ficou tão legal que decidimos escrever a proposta "Bichos para Cantar e Contar" no edital Prêmio Funarte de Concertos Didáticos 2010. E não é que fomos contemplados?! Nos juntamos à dois outros amigos inquietos de alma poética - a fotógrafa e arte-educadora Gabriella Massa e o ator e produtor Heder Braga e visitamos várias escolas com esse espetáculo. Foi durante esse tour que percebemos a força da interação das crianças. Aos poucos elas saíram do papel de platéia e passaram a ser protagonistas. Após cumprir o compromisso firmado no edital, tentamos, em vão, novos meios de seguir apresentando em praças e escolas públicas, passando então a concentrar nossa força em eventos e escolas particulares, reservando algumas apresentações voluntárias em locais de risco social.




Um desses territórios foi o Jardim Gramacho. A convite da Corrente pelo Bem visitei uma das áreas mais miseráveis do Rio de Janeiro. Eu pensava que já sabia o que me esperava porque estava familiarizada com o filme Lixo Extraordinário. Mas a quantidade de crianças e adolescentes grávidas introduzidas naquele cenário imprimiu em mim a sensação de ossos secos. Antes de iniciar a minha apresentação caminhei pelas casas e parei em uma delas onde uma criança de aproximadamente seis anos segurava um bebê aparentemente prematuro. Ao lado, a mãe que me lembrava a minha irmã mais nova aos treze anos sorria para mim com o mesmo olhar curioso da minha mana. Quando comecei o meu trabalho, notei que aquelas crianças não tinham  o mesmo desprendimento daquelas que eu costumava encontrar nas festas e escolas dos mais favorecidos. Era como se algo amarrasse as mãozinhas delas para trás. A maioria permaneceu de cabeça baixa por um bom tempo: mas nada que o nosso Dragão encantado não conseguisse levantar. Aos poucos o grupo foi se soltando e quando vi, a maioria se permitia, inclusive as crianças bem crescidas, como os voluntários.

No final da apresentação, perguntei se havia naquele lugar alguma pessoa que costumava brincar, contar histórias ou cantar com as crianças. Eu queria entregar para essa pessoa a bolsa que um dos nossos parceiros, o Ateliê Árvore Vermelha, havia preparado como um presente simbólico que estimulasse a continuidade daquele trabalho. Nela está escrito: "Carrego comigo um punhado de faz de conta".  Por mais que eu insistisse, ninguém se lembrava desse personagem. Quando mostrei a bolsinha, uma moça se prontificou com um enorme sorriso. Depois disso, eu não voltei ao local, não sei se ela faz o trabalho que se comprometeu, mas soube que as crianças perguntaram por mim quando a corrente passou por lá no mês seguinte.

Esse lugar e essas pessoas ficaram impregnados em minha mente. Tanto que agora busco meios para  desenvolver um trabalho que eu espero ser transformador. Quero voltar ao Jardim Gramacho para convencer aquelas meninas-mães à atuarem como contadoras de histórias e, se possível, futuras Menestréis que visitarão outros territórios para que as meninas-mães de lá façam o mesmo que nós fizemos. Com isso, certamente os filhos delas e de outras como elas, terão a chance de conhecer brincadeiras, literatura e músicas transformadoras. Quem sabe elas se encantarão e se identificarão com a história do Roberto Carlos: um menino negro, que enquanto adolescente foi rotulado de "irrecuperável" pelos seus educadores e hoje é considerado um dos dez melhores contadores de histórias do mundo? 

 Afinal, como lembra Manoel de Barros: "Os andarilhos, as crianças e os passarinhos têm o dom de ser poesia."







Significado de Menestrel

s.m. Na Idade Média, artista que, a serviço da corte ou autonomamente, trabalhava recitando ou cantando poemas em versos. (Fonte: dicio.com.br)