quarta-feira, 10 de março de 2010

Drummond é machista?

       No dia internacional da mulher, dois amigos me enviaram de presente um texto de Carlos Drummond de Andrade que, aparentemente trata sobre a versatilidade da mulher. O texto começa com uma dona de casa dizendo que irá dormir - mas na verdade ela realizará inúmeras funções - e termina com o homem dizendo que irá dormir, sendo esse um fato. Me incomodei com essa imagem da mulher-faz-tudo, talvez porque não me identifique com ela.
         Aprendi a simplificar a vida - não tenho gatos e nem cachorros - e delegar funções porque sei que esse é um meio de me manter realmente viva. Por isso, felizmente na minha casa, meu marido não tem essa postura passiva declarada por Drummond. Embora eu também faça muitas coisas, com um parceiro de verdade, consigo ter projetos pessoais, como fazer e ir ao teatro, visitar exposições de arte, ir ao cinema com amigos e tantas outras coisas que são impossíveis para as mulheres que insistem em ser "fantásticas" como quer Drummond e se deixam tomar pela maratona heróica proposta pelo autor, como se tudo isso fosse obrigação delas.

            Atenção homens: um texto como esse não é presente. Pelo menos para algumas mulheres.


Segue o texto:

As mulheres são tão fantásticas

A mãe e o pai estavam assistindo televisão quando a mãe disse:
- Estou cansada e já é tarde,vou me deitar !!!
Foi à cozinha fazer os sanduíches para o lanche do dia seguinte na escola, passou água nas vasilhas das pipocas, tirou a carne do freezer para o jantar do dia seguinte, confirmou se as caixas de cereais estavam vazias, encheu o açucareiro, pôs tigelas e talheres na mesa e preparou a cafeteira do café para estar pronta para ligar no dia seguinte.
Pôs ainda umas roupas na máquina de lavar, passou uma camisa a ferro, pregou um botão que estava caindo. Guardou umas peças de jogos que ficaram em cima da mesa, e pôs o telefone no lugar. Regou as plantas, despejou o lixo, e pendurou uma toalha para secar. Bocejou, espreguiçou-se e foi para o quarto. Parou ainda no escritório e escreveu uma nota para a professora do filho, pôs num envelope junto com o dinheiro para pagamento de uma visita de estudo e apanhou um caderno que estava caído debaixo da cadeira. Assinou um cartão de aniversário para uma amiga, selou o envelope, e fez uma pequena lista para o supermercado, colocou ambos perto da carteira.
Nessa altura, o pai disse lá da sala:
- Pensei que você tinha ido se deitar.
- Estou a caminho - respondeu ela. Pôs água na tigela do cão e chamou o gato para dentro de casa. Certificou-se de que as portas estavam fechadas. Passou pelo quarto de cada filho, apagou a luz do corredor, pendurou uma camisa, atirou umas meias para o cesto de roupa suja e conversou um bocadinho com o mais velho que ainda estava estudando no quarto. Já no quarto, acertou o despertador, preparou a roupa para o dia seguinte e arrumou os sapatos. Depois lavou o rosto, passou creme, escovou os dentes e acertou uma unha quebrada. A essa altura o pai desligou a televisão e disse:
-Vou me deitar.
E foi. Sem mais nada.

(Carlos Drummond de Andrade)

Nenhum comentário: