terça-feira, 13 de outubro de 2009

A Criança Alheia


Eis uma das cenas que faremos na segunda "Farra de Nelson" no Teatro Tablado em novembro. Esse evento reunit´s cenas de Nelson Rodrigues, dirigidas por André Mattos e encenadas por uma galera muito talentosa - juro que não é corujice! Se duvida, pergunte à quem esteve na primeira noite.

Escrevi essa adaptação a partir da crônica homônima do livro “A vida como ela é” .


Elenco:

Ofélia – Silvania Santos
Detinha – Giulia
Lauro – Heder Braga
Médico – Maurício
Tia – Maria Helena
Mordomo - Hamilton
Ama - Flávia


No palco estão Detinha e Ofélia quando entra o mordomo oferecendo chá.

MORDOMO - Seu chá, madame.

Ofélia e Detinha se servem, enquanto a Ama entra:

AMA - Princesa, não se esqueça que hoje você tem aula de balé, violino, hebraico e esgrima.

OFELIA (pigarro) – Detinha, posso te fazer uma pergunta? E tu me respondes com sinceridade?

DETINHA Ora mamãe! Mas evidente!

OFELIA Você gosta de Lauro?

DETINHA Gosto, sim. Como não? É meu noivo, não é? Devo gostar.

OFELIA Isso não é resposta. Quero saber se você o ama ou não.

DETINHA (custando a responder) Não, mamãe. Não amo meu noivo.

OFELIA (pasma) Então, você me desculpe, minha filha, mas acho muito feio o seu procedimento. Não ama e vai casar? Por quê?

DETINHA (trincando as palavras nos dentes) Porque quero um filho. E preciso ser esposa para ser mãe.

OFELIA (com as mãos na cabeça) Que mentalidade!

Detinha sai de cena.

OFELIA (para o público) Viu só? Essa aí sempre gostou de criança. Mesmo das mais sujinhas, de pé descalço e cheias de lêndias e feridas. Quando ela tinha dez anos, surpreendia e escandalizava nossos parentes e vizinhos ao dizer "Eu queria ter um filho, mamãe!”. O pai dela, mordendo um charuto só bufava: “Que palpite indigesto!”. Não sei se fui eu ou você que explicou para ela que para ter filho era preciso casar. Só sei que três anos depois Detinha começou a namorar. Fiquei uma fera. Mas não adiantou dizer para ela que estava cedo e que ela precisava se concentrar nos estudos. A idéia fixa continuava: “Quero um filho mamãe” E quando eu tentava falar com meu marido sobre meus presságios, aquele traste explodia: "Sossega o periquito!”
Na verdade, Detinha sempre foi uma ótima filha: pensava por todas as cabeças aqui em casa. Mas pra conseguir o que queria ela foi capaz de me desobedecer. Sem dizer nada a ninguém continuou o namoro às escondidas com Lauro. Era o relacionamento mais doce, mais inofensivo do mundo. Ele mais velho que ela dois anos, parecia mais um irmão que um namorado. Uma vez, cheguei bem na hora que ele tentava beijá-la.

O casal na outra ponta do palco. Lauro tenta beijar Detinha.

DETINHA Olha que eu não falo mais com você!

LAURO Está bem, está bem.

DETINHA Eu quero ter muitos filhos. Meia dúzia, no mínimo.

LAURO (assustado) Meia dúzia?

DETINHA Por que não? E olha, está na hora de contar para a mamãe.

LAURO (apavorado) Você tem certeza?

DETINHA Claro. Já escondemos isso por três anos.

OFELIA  O que é que vocês esconderam por três anos?

Lauro tremendo, se esconde atrás de Detinha que segue decidida em direção à mãe.

DETINHA Escondemos o nosso romance Mamãe. Mas agora eu queria que a senhora consentisse, porque eu já tenho 16 anos e queria casar.

OFELIA (fera) Onde é que nós estamos? E fique sabendo: você não se governa!

DETINHA (cresce para cima da mãe) Ou a senhora consente, ou  eu fujo. Depende da senhora.

OFELIA (esgar de choro) Consinto. Não é isso que você quer? Consinto. Pronto.

Algumas cenas para representar o desinteresse de Detinha. Em certo momento, enquanto Detinha bocejava na frente de Lauro, Ofélia chama a filha para um canto.

DETINHA Mamãe, tanto faz que seja Lauro ou qualquer outro. O que eu quero, apenas, é um pai para meus filhos. Só. O resto não me interessa nem me preocupa.

OFELIA Acho esse noivado, tão sem graça, que vou te fazer a seguinte pergunta: Ele já te beijou?

DETINHA Não.

OFELIA Logo vi! Está na cara!

Detinha no palco com o telefone.

DETINHA Mamãe? Ainda não estou sentindo nada! (intervalo) Como assim, o casamento já foi à quinze dias! (intervalo) Você não sabe dizer outra coisa além de “Calma no Brasil"?

Detinha no palco com o médico.

DETINHA Será que estou, doutor?

MÉDICO (sorrindo e colocando a luva) Detinha, minha filha, eu te conheço desde criança e sei o que você quer. Vamos ver isso direitinho, está bem? (examinando)

MÉDICO Por enquanto não há novidade.

Detinha anda desesperada em direção à Lauro.

DETINHA Todo mundo tem filho. Será que só eu que não? Parei contigo, puxa!

Volta para o médico

DETINHA E, então, doutor? 

MÉDICO (suspirando) Nada.

Lauro chega e Detinha está aniquilada.

DETINHA (com ódio) Você sabia, porque eu lhe disse, que eu não o amava. Casei-me para ter um filho! Só. E será que não vou ter essa sorte?

LAURO (doce) Vamos esperar, meu anjo. Vamos esperar mais um pouco.

DETINHA (olhando Lauro de cima à baixo) Se não me deres esse filho, eu vou te odiar até  meu último dia de vida.

Detinha sai por um lado do palco e retorna pelo outro lado, falando ao telefone.

DETINHA Como assim negativo doutor? Cinco meses! Será que o meu sangue não combina com o do meu marido?

Ela desliga o telefone e convoca o marido.

DETINHA Você vai ao médico, ouviu? Eu quero saber se você pode ou não pode ter filhos.

LAURO (pálido) Ir ao médico?

Lauro tem uma súbita crise de choro.

LAURO Eu não preciso ir ao médico, porque já fui! Não posso ter filhos! Não posso...

Detinha olha para o marido sem pena, com desprezo e asco enquanto vê Lauro chorando. Ela cruza os braços

DETINHA Tomarei minhas providências!

Ambos saem do palco.

OFELIA (sentada na primeira fila, fala com alguém no público) Você não acha isso estranho? Os dois vivem debaixo do mesmo teto, são marido e mulher e passam dias inteiros sem uma palavra, um olhar, um sorriso.

Lauro chega cabisbaixo entrando pelo fundo da platéia. Uma senhora se levanta da platéia e vai ao encontro de Lauro com os braços abertos dizendo o nome Lauro de vários modos diferentes.

LAURO (sem graça) Oi tia Moema. Como vai?

TIA Meus parabéns! Até que enfim!

LAURO Parabéns por que?

TIA Soube que detinha vai ter neném!

Lauro larga a tia e sai correndo. No palco Detinha valsa, sozinha, ao som do rádio. Ela estaca, ao vê-lo.

LAURO É, então, verdade?

Detinha recua apavorada.

DETINHA E se for?

Lauro aperta a mulher bruscamente.

LAURO Eu amarei essa criança como se fosse meu filho!

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